O Quarteirão
por Jorge Ferreira
Andamos à volta do quarteirão. Uma, duas, tantas vezes. Passeamos o cão que não temos e, por mais voltas que dermos, voltamos sempre ao mesmo. Estamos enredados numa teia. Somos prisioneiros. O nosso quarteirão é o recreio. Os guardas invisíveis estão alerta.
A sorte de ter um café e uma esplanada por perto. Depois das oito só restaurantes e para jantar. Pelas onze tudo fecha. O cão que não temos começa a ficar com uma sonora tristeza. Os gatos gemem nos quintais. Mascarados sonolentos passeiam a agonia. Ninguém fala com ninguém. Há cães a passearem os donos.
Um silêncio mortífero. Vidros espalhados no passeio. Duas máscaras e umas luvas. Coisas abandonadas por alguém ou que abandonaram alguém. Nunca o saberemos. Não há câmaras de vigilância nesta rua. Quem controla quem? Sabemos ao menos quantos somos? As madeiras velhas da casa rangem. As mudanças de temperatura acentuam-se.
Há na minha rua uma vivenda rodeada de grades a toda a volta. Nunca lá vi ninguém. Que guardará tal cofre-forte? A quem pertence? Nem um cão de guarda. Apenas câmaras e alarmes. Estranho modo de viver.
Conforme a noite vai avançando vamos conversando sobre a vida. O que não temos, o que deixámos de fazer e o futuro que desconhecemos. De vez em quando apetece-nos sermos transgressores de novo. Voltar aos nossos vinte anos e passar as fronteiras proibidas. Obrigar o fulano do café a vender-nos uma bica depois das oito. Acabamos por desistir. Ficamos nós e o cão que não temos.
Quando viajava, por vezes, trazia camisolas de algumas cidades. Dão sempre jeito e é uma maneira de viajar com pouca coisa. Há dias em que visto uma ou outra. A Isabel pediu-me para as deixar de usar. Motivo? Faz-lhe impressão e fica incomodada ao pensar quando e se compraremos mais uma camisola daquelas numa cidade qualquer do mundo.
Eu vou fazer-lhe a vontade. Vou andar com camisolas estampadas com nada. O vazio absoluto. O mais simples vestir. Como se fosse a uma festa sem banda, baile e convidados. Vivemos na ausência das coisas. Vamos engordando sem saber para quê. Lembro-me do porco e da matança. Mudo de assunto na minha cabeça. Viro-me para o lado de fora das coisas. Nada que vejo me agrada. Será muita a minha exigência? Será que é oco tudo o que vislumbro?
Na televisão tentamos fazer a nossa programação. Continuamos a comprar jornais em papel porque sim. Remar contra a maré. Procurar os livros esquecidos. Vivemos das novidades. Os fundos de catálogo são difíceis de encontrar. Tento na “Bela Galileu” em Cascais. Telefono à Caroline, minha amiga, resistente livreira. Recebo livros pelo correio da minha editora. Obrigado Virgínia. Obrigado Poética.
Leio Bernard Henri Levy. O livro: “Este Vírus Que Nos Enlouquece e estou-me a obrigar a reler algumas passagens entretanto marcadas. A nossa vida gira à volta disto. Damos saltos e saltos e voltamos ao mesmo sítio.
Que futuro?
«Tu hoje estás pior. Já não sei que te faça mais.»
Fala de Isaurinda.
«Que queres? Não achas que isto está a ser demais? Há quantos meses andamos nisto?»
Respondo.
«Vocês vejam lá se atinam e cuidem-se.»
De novo Isaurinda e vai, nem um lenço na mão.
Jorge C Ferreira Agosto/2020(263)
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.
Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira
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Vivemos mesmo na “ausência das “coisas”. Algumas tão imprescindíveis que a sua falta nos sufoca os dias . Até quando? Esta indefinição, esta incerteza corrói os nossos corações de uma forma ainda desconhecida. Belo texto.
Obrigado Isabel. O que mais custa é tudo. Mas o não sabermos até quando é horrível. Abraço
“Passear o cão que não existe”! Belo cenário para a cena da vida presente; virá outro episódio igual e outros seguir-se-ao, sem intervalo, sem pipocas, sem uma bica para sentir algum sabor por companhia.
Precisamos de inventar personagens que não vemos na calçada que vamos pisando, sem descurar a atenção aos dejectos do cão, apanhá-los no saquinho plástico para estar mais ocupado.
Um abraço, Jorge!
Obrigado António. Parece que estamos a viver dentro de um filme. Tudo acontece sem nos apercebermos. Resustir, meu amigo. Abraço
Habituaste-nos a esses parágrafos curtos. A esse saltar de imagem em imagem como se fosses um acrobata.
Seguimos-te.
A ti. E à tua companheira. Ao cão que não têm. À casa desabitada com gente lá dentro. Aos cafés que encerram às oito.
À vontade que fazes à Isabel não usando as camisolas que vieram de lugares longínquos…
Remar contra a maré. Ir em busca dos livros esquecidos.
Os quarteirões.
Espaços que fazem parte das nossas rotinas.
Circuitos fechados.
Circunscritos.
Vigiados.
Não haverias tu, amigo meu, habituado a cavalgar nas asas do vento, a pelejar contra as tempestades, a entreter os tempos mortos, a imaginar outras vidas, novos encontros, aventuras por mares de navegadores afoitos e destemidos, não haverias tu de te sentir aprisionado, algemado se te vão usurpando as tintas com que pintas as noites de sonhos???
“Manter a capacidade de indignação. Nunca perder a necessidade de amar e ser amado”. Jorge C. Ferreira”.
Obrigado Mena. Dizes tudo tão bem. Sim, vivemos como que aprisionados. Os movimdntos controlados. Grato pelo teu comentário. Abraço
Tudo dito meu amigo. Vontade de transgredir. Afastar barreiras. Memórias esquecidas.
Notícias preocupantes. Memórias curtas.
Pensar, pensar. O abraço perdido. As pessoas que não vemos.
Para onde caminhamos? Até onde resistimos?
Vamo-nos cuidando. Cansa de tanto cuidar.
Obrigada por estar desse lado.
Um grande abraço.
Obrigado, Eulália. Sim, minha amiga, para onfe caminhamos. Que mundo está a ser criado. Este falso tempo. Granfe abraço
Querido amigo, depois do que escreveste nada mais posso dizer e assino por baixo na maioria das tuas impressões. Abraço grande.
Obrigado, Ivone, minha Amiga, minha Irmã. Estamos juntos nesta difícil caminhada. Resistir. Abraço Grande
Escreveste a crónica às voltas no quarteirão, com o cão imaginário “Este vírus que Nos Enlouquece”. No entanto, utilizas sentido de humor, no que nunca vivemos. Pensamentos individuais e colectivos depressivos. A tristeza parece que veio para ficar. Não é possível continuarmos às voltas no mesmo espaço. Sempre desconfiados, andamos num ziguezague, desviar o caminho porque vem outra pessoa. Ainda tenho esperança que vamos caminhar em frente sem medo. Abraçar e ficar sem tempo. Jorge, deixo-te aqui o meu possível.
Obrigado Regina. Termos um quarteirão é uma benção. Ter um cão imaginário, uma extravagância. Vamos resistindo. Abraço